terça-feira, 2 de maio de 2017

Quatro livros e muitos "Brasis".

Ler é viajar no tempo, é entender o passado e vislumbrar o futuro, a cada leitura abrimos uma fissura no espaço/tempo e conhecemos outras realidades, ler nos faz melhor, nos torna abertos para o diferente, para o outro. Minhas quatro últimas leituras me levaram para momentos distintos da história do Brasil, para situações diversas, cada uma com sua complexidade, autores de diferentes correntes, escolas e gerações. Um aprendizado inesquecível.


Para quem ainda não sabe, sou apaixonado por literatura brasileira e para ser democrático, procuro sempre ler um livro estrangeiro e um brasileiro, mas nesse último mês me dediquei exclusivamente aos autores brasileiros. Minha saga se inicia lá nos anos de 1920, com o primeiro romance do mestre da literatura brasileira, Jorge Amado. Em "O País do Carnaval", fui apresentado a Paulo Rigger e seus amigos, que são um retrato da intelectualidade brasileira da época, ainda muito influenciada pelo continente europeu, em especial a França, que recebia os filhos dos grandes fazendeiros tupiniquins, Rigger era filho de um grande plantador de cacau na Bahia e buscava o sentido da vida e da felicidade, mas era um homem muito ciumento. Uma leitura muito fluida e verdadeira, o retrato de uma época de ansiedade para os jovens. Jorge Amado escreveu o livro aos 18 anos de idade, quando já estudava Direito no Rio de Janeiro e o publicou em 1931, o livro foi um sucesso gigantesco, traduzido para várias línguas e publicado na Europa. E eu, o que fiz aos meus 18 anos??? (hehehe)


Vinte anos mais tarde, embarco com Virgínia em a "Ciranda de Pedra", romance de Lygia Fagundes Telles lançado em 1954, que se passa entre as décadas de 40 e 50. Me surpreendi muito com a história, pois da autora só havia lido o romance "As Meninas", Lygia sabe explorar como ninguém o perfil psicológico de seus personagens, uma característica dos autores modernistas dessa época. Virgínia se vê atormentada por uma mãe louca e um padrasto que se suicida. Se vê em competição constante com suas irmãs Otávia e Bruna, além de sua paixão platônica por Conrado. Virgínia, quando confrontada pela verdade por Luciana, governanta da casa em que morava com sua mãe, decide ir para um internato de freiras, onde amadurece, quando termina seus estudos volta para a realidade de sua família, decidindo enfrentar à todos. O romance de Telles foi algo bem progressista para época, pois já apresentava uma personagem homossexual, Letícia, tratando do assunto com muita naturalidade e complexidade ao mesmo tempo. O desenvolvimento psicológico da história é feito com maestria, a história é tão boa que já foi adaptada duas vezes para a televisão, em 1981 e 2008. Só lembrando que Lygia está vivíssima, tem hoje 94 anos e no ano passado foi a escolha brasileira para concorrer ao Prêmio Nobel de Literatura!!!


Nessa mesma época, década de 50, iniciei outra aventura, que será narrada até os anos 2000, essa, um spin-off da trilogia de PJ Pereira, Deuses de Dois Mundos, uma saga que mescla a mitologia yorubá, os deuses do Candomblé, de forma atemporal com os dias de hoje, na saga principal somos apresentados a Pilar, que é a personagem principal desse desdobramento chamado "A Mãe, A Filha e o Espírito da Santa", um romance que irá tratar da religiosidade brasileira e de violência psicológica, mas também de uma personagem forte, que resiste a uma sociedade machista, se impondo, fazendo o mesmo jogo, criando uma legião de seguidores. Pilar foi anunciada como a messias, a irmã de Jesus, nascida em Codó no Maranhão, filha de uma mãe de santo, vê sua vida mudar quando vai para Brasília, viajando com uma trupe de circo, na capital do país vive momentos decisivos, com sua história resvalando na ditadura militar que assolou o país, após esse período de descobertas e reviravoltas, viaja pelo mundo e volta para São Paulo, onde funda seu culto e cria o mito em volta de seu nome. Pilar é a representação religiosa de nossa sociedade, extremamente mística, começa sua vida no batuque do candomblé e na missa da igreja católica, se envolve com o pentecostalismo importado dos norte-americanos, mesclando tudo isso com as teorias da nova era. Um caldeirão de crenças que conquistava dos mais humildes aos mais ricos. PJ Pereira criou uma obra clássica da literatura brasileira, uma obra que representa o que há de melhor da produção literária contemporânea. É claro que eu já quero a adaptação para uma série, nunca te pedi nada Netflix, por favor!?!?!?


Caminho mais um pouco sobre os últimos anos e chego em 2013, uma história contada em primeira pessoa por um médico do SUS. "Meu Primeiro Morto", primeiro romance de Jaci Palma, vencedor do Prêmio Paraná de Literatura na categoria romance em 2013, é um relato brilhante de um médico plantonista em um pronto-socorro movimentado, tendo que fazer milagres com a estrutura à sua disposição. a história se passa em um único plantão. A obra é uma crítica muito verdadeira sobre a situação do SUS no país, uma crítica consistente que não se baseia no senso comum midiático, além da reflexão há a construção psicológica de um personagem forte, pragmático e ainda sonhador, com sua vida amorosa esfacelada e sua falta de esperanças na humanidade, o médico vai narrando sua rotina ao mesmo tempo em que descreve psicologicamente seus pacientes e colegas de trabalho. Jaci Palma cria uma grande obra de literatura contemporânea, com duras críticas e reflexões, mas também com o traçado de um personagem que quer se mostrar mesquinho, mas é grande, é humano. Para quem ama séries médicas, essa leitura é praticamente obrigatória!!!

Tracei praticamente 100 anos de história nessas quatro obras, conheci e me aprofundei em cenários históricos variados, que construíram a nossa realidade atual, a literatura é um reflexo da sociedade em uma determinada época, ela irá mostrar os anseios das gerações, as críticas, as paixões. Todas as obras são indicadíssimas, leituras muito aprazíveis, que fazem nos apaixonar, reclamar, chorar, gritar, odiar e sonhar. 

Boas leituras e até o nosso próximo encontro!!!